sábado, 11 de julho de 2009

Sobre o Uso da Força: 3ª Parte

SUPERANDO O PARADIGMA MILITARISTA DA FORÇA: O CASO BRASILEIRO.



Ao contrário do que acontece na maioria dos países do denominado primeiro mundo, em alguns países desenvolvidos e em desenvolvimento, dentre as diversas nações com distintas culturas, a questão do uso da força por partes das instituições policiais encarregadas de fazer cumprir a lei tem sido tratada no sentido da força representar um fim em si mesmo.


Em outras palavras, regra geral, os nobres ideários de servir e proteger a sociedade têm sido constantemente negligenciados a partir da falsa premissa paradigmática de que a idéia de serviço policial deva estar necessariamente subordinada à idéia de força.


Nesses estados, normalmente marcados por altos níveis de desigualdade social ou por um extremo viés autoritário, as forças vivas da sociedade e a polícia assumem papel protagonista de primeira magnitude.


Enquanto o primeiro ator, a sociedade civil, confere ao segundo ator, a polícia, um “consentimento social não declarado e seletivo” para o uso “desmedido” da força e, simbolicamente, reconhece no policial àquele indivíduo com responsabilidade funcional pela “limpeza da escória humana”, conformando assim uma nova “categoria profissional” que funciona como uma espécie de “gari social” [1], o segundo ator atua como operador de um processo de reificação desse imaginário coletivo que se reproduz na política e que permeia, especialmente, a cultura organizacional das instituições policiais que, através do exercício da autoridade, em alguns casos, assume o pragmatismo da violência arbitrária, do abuso de autoridade e da aplicação ilegítima e ilegal do uso da força.


Sob a égide do estado social democrático de direito, a população brasileira e os servidores públicos das instituições componentes dos sistemas de justiça criminal e de segurança pública, encarregadas de preservar a ordem pública e cuidar da incolumidade das pessoas e do patrimônio[2] , tem enfrentado graves dilemas de natureza moral no que concerne ao esforço cognitivo adequado, ajustado aos preceitos da civilização contemporânea, sobre o conceito, os limites e os alcances do uso legítimo da força legal.


Não obstante, muito embora existam reconhecidos esforços de melhoria da qualidade do ensino policial para tentar minimizar as demandas e expectativas contraditórias da sociedade, ainda persiste no âmbito das organizações de força o conflito entre teoria e prática.


No plano acadêmico, algumas razões podem estar direta e indiretamente associadas a esse conflito, dentre as quais se destacam: 1) A inexistência de um marco legal objetivo disciplinando a matéria; 2) Insuficiência de conteúdos programáticos específicos sobre o uso comedido da força policial; 3) Existência de padrões relacionais de subalternidade que podem comprometer a adoção plena de uma metodologia de ensino que estimule à construção de um saber crítico[3]; 4) Insuficiência de meios auxiliares de ensino adequados para o desenvolvimento do processo ensino – aprendizagem.


Sobre a primeira razão destacada, no âmbito nacional, urge determinar em lei quais são os parâmetros e os critérios que devem balizar o uso legítimo da força policial das instituições encarregadas de fazer cumprir a lei e, se for o caso, também determinar, através de decreto, a regulamentação desses parâmetros e critérios, a partir de padrões mínimos e procedimentos que devam ser obedecidos pelas autoridades policiais encarregadas de fazer cumprir a lei.


Sobre as demais razões apresentadas, talvez seja razoável considerar o policial, no bojo das suas qualificações que, em tese, estariam inscritas no perfil profissional desejável de um servidor dessa natureza, sempre consubstanciado por uma análise de ocupações próprias adstritas ao uso comedido da força legal, como sendo a autoridade com investidura legal, cujo papel principal a desempenhar é o de atuar como “administrador de emoções”. Esse exercício abstrato de elucubração poderia auxiliar numa melhor compreensão, do ponto de vista didático-pedagógico, dos limites e alcances do uso legítimo da força legal.


Esse novo conceito, ainda que formulado precariamente, permitiria, por exemplo, reconhecer no poder da autoridade policial, através da sua manifestação intrínseca e extrínseca, o seu relevante papel social na condução superior de eventuais perturbações morais que afligem o convívio harmonioso dos indivíduos em sociedade, gerando situações de conflito.


Nesse contexto de prestação de serviços policiais orientados para “administração das emoções”, o exercício da autoridade pública através da utilização da força instrumental coercitiva, abstrata e concreta, potencial e iminente, legítima e legal, sempre respaldada pelo sistema legal pré-existente, compreenderia um conjunto de saberes e práticas multidisciplinares fundamentais que estariam, sem prejuízo das técnicas profissionais necessárias, orientados para a construção de novos conteúdos programáticos que comporiam de forma integrada uma nova disciplina sobre o uso comedido da força. Destacam-se, com especial ênfase, as áreas do conhecimento da psicologia, da sociologia, do direito, da administração e da física.


Também seria de vital importância redimensionar a relação de subalternidade entre docentes e discentes, superiores e subordinados, na perspectiva da produção e no desenvolvimento de um novo conhecimento profissional que deverá estar sempre alicerçado numa metodologia de ensino que estimule a construção de um saber crítico profissional, consubstanciado, por exemplo, em dinâmicas de grupo (discussão dirigida, estudos de caso, debates...) que garantam a participação ativa de todos na análise racional das questões apresentadas.


Da mesma forma, é indispensável que exista uma infra-estrutura de ensino adequada (laboratórios de aplicação), dotada de instalações, dependências e equipamentos auxiliares objetivando o desenvolvimento pleno das atitudes e dos comportamentos procedimentais assimilados em face de situações conflituosas que requeiram o uso comedido da força nas suas múltiplas dimensões interventoras.


Nesse sentido, no ano de dois mil e sete, a Assessoria Técnica de Assuntos Especiais – ATAE do Gabinete do Comandante Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (GCG / PMERJ) elaborou uma proposta visando à implantação do Centro Integrado Especializado no Uso Comedido da Força (CIEUF), espaço multifuncional integrado destinado ao desenvolvimento de conhecimentos e atitudes e ao aperfeiçoamento de habilidades com vistas ao uso comedido da força[4].


No campo da prática policial é onde se verifica a manifestação externa do conflito axiológico entre a idéia de serviço e a idéia de força. Como já foi dito, ainda prevalece no seio da cultura organizacional das instituições encarregadas de fazer cumprir a lei, a falsa noção de que a idéia de serviço policial deve estar necessariamente subordinada à idéia de força. Em certa medida, essa forma de pensar está “legitimada” por falsas concepções do que venha a ser serviço público na doutrina administrativa[5], bem assim pelas próprias expectativas e demandas presentes e extraídas do imaginário coletivo de importantes segmentos sociais o que contribui sobremaneira para agravar a dinâmica da reprodução conflituosa entre valores.


Não obstante o reconhecimento sobre a existência de fatores de incidência, educacionais e culturais (político, jurídico, social e organizacional) que repercutem na conformação do modelo do uso comedido da força legal por parte das instituições policiais encarregadas de fazer cumprir a lei, é importante destacar quais são condicionantes intervenientes que autorizam a autoridade policial a usar da força sempre que requisitada.


CONDICIONANTES DO USO COMEDIDO DA FORÇA LEGAL


De um modo geral, no âmbito das instituições policiais encarregadas de fazer cumprir a lei, o uso legítimo da força legal compreende objetivamente quatro condicionantes básicas: 1) condicionantes legais; 2) condicionantes técnicas; 3) condicionantes fisiológicas; e; 4) condicionantes circunstanciais.


Não obstante, existem também diversos fatores, internos e externos às instituições policiais, que incidem subjetivamente sobre o comportamento da autoridade policial e influenciam o resultado decorrente da aplicação do uso legítimo da força legal. Nesse sentido, podemos destacar como um dos principais fatores externos as perturbações psicológicas geradas sobre a autoridade policial por meio da difusão de dados e informações inverídicas e fictícias insertas numa lógica especial de programação da linguagem, geralmente levada a efeito através dos diversificados veículos de comunicação social, fruto dos mais variados produtos da mídia e seus derivados e como fator interno relevante o padrão operacional que é reproduzido no âmbito de uma cultura organizacional militarista, onde a componente força, em tese, legítima e legal, atua sob a égide de um modelo de repressão desqualificada.


Como já vimos, as condicionantes legais nos remetem ao conjunto de normativas estabelecidas nos planos internacional e nacional. Desse conjunto, destacamos: a) no plano internacional, “Os Princípios Básicos sobre o Emprego da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei” (8º Congresso da ONU sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, 1990) e o “Código de Conduta para os Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei” (ONU – Resolução nº 34 / 169 de 1979); b) no plano nacional, a Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, o Código Penal e o acervo de normas procedimentais das instituições encarregadas de fazer cumprir a lei, tais como Portarias, Notas de Instrução, Planos e Ordens de Operação etc.


Com respeito às condicionantes técnicas[6], reside na formação e no treinamento continuado sua principal essência. Sem embargo, é importante reconhecer que tal esforço só produzirá resultado efetivo, na medida em que sejam observados os seguintes componentes: 1) conteúdos programáticos multidisciplinares e integrados transversalmente; 2) metodologia de ensino, dinâmica e participativa, sempre dotada de efetivos mecanismos de avaliação e de controle do processo ensino – aprendizagem; 3) instalações, dependências e meios auxiliares de ensino apropriados; e, 4) no âmbito do serviço policial propriamente dito, suporte político e administrativo adequado, compatível com os valores preconizados nos marcos legais normativos, e orientados com especial ênfase para o gerenciamento de pessoas, processos, logística e tecnologia de ponta.


Sobre as condicionantes fisiológicas, cabe salientar que o estado físico e mental da autoridade policial encarregada de fazer cumprir a lei constitui fator concorrente para o resultado decorrente do uso da força.


Nesse sentido, o regime de trabalho policial, a escala de serviço, a remuneração, o regime disciplinar, dentre outros, são aspectos importantes do trabalho policial que influencia, direta e indiretamente, o exercício da autoridade policial, na perspectiva do uso da força.


À guisa de ilustração, no âmbito das condições de trabalho, sabemos que muitos policiais se sujeitam à realização de serviços fora do horário normal de serviço, os famigerados “bicos”, principalmente em razão da baixa remuneração percebida, como forma de complementação de renda.


Nesse contexto, por exemplo, além do sedentarismo profissional decorrente da falta de tempo para a educação física e intelectual e treinamento, as escalas de serviço policial ostensivo com doze horas ou mais de duração, a escalação para serviços extraordinários e a ineficiência do sistema de gerenciamento de pessoas, processos e tecnologia, geram estresse e propiciam desgaste físico e mental[7].


Em muitas instituições encarregadas de fazer cumprir a lei, a dinâmica dos acontecimentos exige das organizações policiais respostas imediatas que, via de regra, acaba por acarretar práticas gerenciais negligentes por um lado e complacentes por outro, que podem culminar com a ocorrência de resultados não desejados por parte da administração, como por exemplo, o desvio de conduta profissional, a morte de policiais em situação caracterizada como acidente de serviço, a morte de civis inocentes, além de diversos traumas que podem resultar na incapacidade física e mental de civis e do próprio servidor público encarregado de fazer cumprir a lei[8].


No que tange às condicionantes circunstanciais, a autoridade policial deverá atentar, mesmo sendo alvo de uma agressão grave e injusta para a exposição concreta de inocentes a situações de perigo real e iminente e suas conseqüências trágicas. Nessas ocasiões, “onde houver a probabilidade de um inocente vir a ser atingido, o policial tem a obrigação de recuar e solicitar apoio, aguardando assim uma condição mais propícia para abordar e realizar a prisão do delinqüente e até mesmo, se for o caso, de possibilitar a fuga do criminoso armado” (Nota de Instrução PMERJ nº 10/83).



[1] Muniz, Jacqueline – “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”, Tese de doutorado, IUPERJ, 1999.

[2] Artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio...”.

[3] Ministério da Justiça, PNUD & FIRJAN, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Arquitetura do Sistema Único de Segurança Pública, Formação, 2004.

[4] Teixeira, Paulo Augusto. Tenente – Coronel – Proposta da ATAE, GCG / PMERJ: “A proposta abrange todos os estágios do gradiente do uso da força e privilegia o desenvolvimento das diferentes interfaces que compreende o homem, os processos e os mecanismos tecnológicos. O conceito de centro integrado permite agregar diversas áreas do saber, como a mediação de conflitos, o método global de autodefesa e o emprego de armas não – letais e letais, propiciando uma riqueza de experiências, preparando assim os policiais nas diversas áreas de sua atividade profissional. Além disso, a idéia é desenvolver procedimentos mais padronizados de controle e fiscalização da arma de fogo”.

[5] Wikipedia, in (http://pt.wikipedia.org/wiki/Poder_de_pol%C3%Adcia) “A concepção de serviço público na doutrina administrativa, historicamente, formou-se como espécie antinômica à do poder de polícia administrativo, à medida que, enquanto se tinha no primeiro uma espécie de prestação positiva do estado, no segundo, identificavam-se basicamente prerrogativas que impunham limites à ação do particular...”.

... dividem os serviços públicos entre serviços uti singuli e uti universi. O primeiro, prestados a usuários determinados de dada prestação perfeitamente mensurável. O segundo, ao contrário, serviço de caráter geral, prestado com a finalidade de atender à coletividade, sendo impossível à individuação dos beneficiários do mesmo. A delegação da prestação do serviço à iniciativa privada, in casu, será possível em relação aos serviços públicos uti singuli, nunca aos uti universi”.

[6] Alonso, Alberto Cabas. El uso de la fuerza en la intervención policial: “Los requisitos para el empleo de la fuerza son en la mayoría de los países coincidentes: 1) Inicialmente se ha de recurrir a medios no violentos (Judo Verbal); 2) La fuerza se usará solo en los casos estrictamente necesarios, siempre bajo fines lícitos marcados por la ley y de forma proporcional. (Uso de la Defensa personal Policial); 3) Se dispondrá de una gama amplia de medios para que se pueda hacer un uso diferenciado de la fuerza (Armas no Letales); e, 4) Se debe recibir adiestramiento continuado tanto en defensa personal policial, manejo o uso de armas no letales y de armas letales. Como todos sabemos, casi siempre fallan los puntos 3 y 4, es decir, No se dispone de una gama amplia de Armas no Letales, que hay muchas y muy apropiadas para usarlas en intervenciones donde por carecer de ellas se ha pasado de hacer uso de medios no violentos (Judo verbal), o de una técnica de DPP, al uso de una arma letal teniendo como resultado un desenlace fatal, tanto para la victima como para el policía que se ha visto obligado al uso de la misma. Y sobre todo, el adiestramiento continuado, suele brillar por su ausencia sin no perteneces a una unidad especializada.”

[7] Sandes, Wilquerson Felizardo. Uso não letal da força na ação policial. Fórum Brasileiro de Segurança Pública (http://www.forumseguranca.org.br/artigos/uso-nao-letal-da-forca-na-acao-policial). “Em relação à cultura policial brasileira sobre o uso da força, a pesquisadora social, Maria Aparecida Morgado entende que fatores como a ação impulsiva, descontrole emocional e despreparo técnico não são suficientes para explicar o uso desmedido da força na ação policial. Há muitos outros fatores que contribuem para essa possível manifestação de um policial, tais como aprovação popular ao uso da força e uma cultura repressiva e permissiva do estado”.

[8] Otero, Jorge. Preparador físico dos policiais do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) – “Duas Cocas Zero e a conta... por Mauro Ventura (Revista Globo, 25 de maio de 2009). “Conseguimos reduzir as lesões devidas ao esforço. A média de lesionados durante as incursões ou os treinos caiu de 83% para 17%. E, se a tropa está bem treinada fisicamente, diminuem os tipos penais, o combatente não vai errar por causa da fadiga”.

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