sábado, 11 de julho de 2009

Sobre o Uso da Força: 2ª Parte



MARCOS DE REGULAÇÃO DO USO LEGÍTIMO DA FORÇA LEGAL


No plano internacional, o principal marco de regulação do uso legítimo da força legal são os “Princípios Básicos[1] sobre o Emprego da Força e de Armas de Fogo por Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei[2]”, acordados por ocasião do oitavo congresso das nações unidas sobre prevenção do delito e tratamento do delinqüente, celebrado em La Habana (Cuba), de 27 de agosto a 07 de setembro de 1990.


O documento, subdividido em seis áreas de interesse (preâmbulo; disposições gerais; disposições especiais; atuação em caso de reuniões ilícitas; vigilância de pessoas custodiadas ou detidas; qualificações, capacitação e assessoramento; e, procedimento de apresentação de informes e recursos), oferece diretrizes gerais de ações e procedimentos especialmente focadas no gerenciamento de meios, pessoas e processos associados à complexa dinâmica que norteia as hipóteses de aplicação do uso legítimo da força legal.


No contexto do emprego da força e de armas de fogo, os referidos princípios reconhecem: 1) Que o trabalho dos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei constitui um serviço social de grande relevância e, por essa razão é preciso melhorar as condições de trabalho e a situação desses funcionários; 2) Que a ameaça à vida e a segurança dos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei deve ser considerada uma ameaça à estabilidade de toda a sociedade; 3) Que os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei desempenham um papel fundamental na proteção do direito a vida, a liberdade e a segurança das pessoas; 4) Que os funcionários poderão usar a força quando seja estritamente necessário e na medida que requeira o desempenho de suas tarefas; e, 5) Que o emprego da força e armas de fogo por parte dos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei deve estar conciliado com o devido respeito aos direitos humanos.


Sobre as disposições gerais, os princípios estabelecem: 1) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei adotarão e aplicarão normas e regulamentações sobre o emprego da força e de armas de fogo; 2) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei estabelecerão uma série de métodos amplos e dotarão os funcionários de distintos tipos de armas e munições de modo que possam fazer um uso diferenciado da força e das armas de fogo[3]; 3) Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei, na medida do possível, utilizarão meios não violentos antes de recorrer ao emprego da força e de armas de fogo; 4) Quando o emprego de armas de fogo seja inevitável, os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei: a) Exercerão moderação e atuarão na proporção da gravidade do delito e ao objetivo legítimo que se persiga; b) Reduzirão ao mínimo os danos e lesões e respeitarão e protegerão a vida humana; c) Socorrerão os feridos e notificarão seus parentes ou amigos; 5) Quando empregar a força ou armas de fogo ocasionarem lesões ou morte, os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei comunicarão imediatamente o ocorridos aos seus superiores; e, 6) Os governos deverão adotar as medidas necessárias para que seja punido como delito o emprego arbitrário ou abusivo da força ou de armas de fogo por parte dos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei.


Sobre as disposições especiais, os princípios estabelecem: 1) Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei não empregarão armas de fogo salvo em defesa própria ou de outras pessoas, em caso de perigo iminente de morte ou lesões graves ou com o propósito de evitar o cometimento de um delito particularmente grave que represente uma série ameaça para a vida, ou com o objetivo de deter uma pessoa que represente esse perigo e ofereça resistência a sua autoridade ou para impedir a sua fuga, e somente no caso de que resulta insuficiente adoção de medidas menos extremas[4]; 2) As normas e regulamentações sobre o emprego de armas de fogo pelos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei devem conter diretrizes que: a) Especifiquem as circunstâncias em que os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei estariam autorizados a portar armas de fogo e que tipos de armas de fogo e munições estão autorizados; b) Assegurem que as armas de fogo sejam utilizadas somente nas condições e situações tecnicamente apropriadas, para que se diminua o risco de danos desnecessários; c) Proíbam o emprego de armas de fogo e munições que possam provocar lesões não desejadas ou signifiquem um risco injustificado; d) Regulamentem o controle, armazenamento e distribuição de armas de fogo, assim como os procedimentos para assegurar que os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei respondam pelas armas de fogo e munições que receberam; e) Sinalizem orientações e avisos de advertência sempre que se vá fazer uso de armas de fogo; f) Estabeleçam um sistema de apresentação de relatórios sempre que os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei recorram ao emprego de armas de fogo no desempenho de suas funções.


Sobre a atuação em caso de reuniões ilícitas, os princípios estabelecem: 1) Os governos e os organismos e os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei reconhecerão que a força e as armas de fogo podem ser utilizadas somente: a) Ao dispersar reuniões ilícitas os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei evitarão o emprego da força ou, se não for possível, o limitará ao mínimo necessário; b) Ao dispersar reuniões violentas, os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei somente poderão utilizar armas de fogo, na mínima medida necessária, quando não se possam utilizar meios menos perigosos[5].


Sobre a vigilância de pessoas custodiadas ou detidas, os princípios estabelecem: 1) Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei, em suas relações com pessoas custodiadas ou detidas não empregarão a força, salvo quando seja estritamente necessário para manter a segurança e a ordem nos estabelecimentos ou quando ocorra perigo para a integridade física das pessoas; 2) Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei, em suas relações com pessoas custodiadas ou detidas não empregarão a força, salvo quando em defesa própria ou em defesa de terceiros quando haja perigo iminente de morte ou lesões graves, ou quando seja estritamente necessário para impedir a fuga de uma pessoa submetida à custódia ou detenção que represente esse perigo e ofereça resistência a sua autoridade.


Sobre qualificações, capacitação e assessoramento, os princípios estabelecem: 1) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei procurarão que todos os funcionários encarregados de cumprir a lei sejam selecionados mediante procedimentos adequados, possuam aptidões éticas, psicológicas e físicas apropriadas para o exercício eficaz de suas funções e recebam capacitação profissional contínua e completa. Tais aptidões para o exercício dessas funções serão objeto de exame periódico; 2) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei procurarão que todos os funcionários encarregados de cumprir a lei recebam capacitação no emprego do uso da força e sejam examinados em conformidade com normas de avaliação adequadas. Os funcionários que devam portar armas de fogo devem estar autorizados para fazê-lo somente depois de ter concluído a capacitação especializada; 3) Na capacitação dos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei, os governos e os organismos correspondentes prestarão especial atenção nas questões de ética policial e direitos humanos, especialmente no processo de indagação, aos meios que podem substituir o emprego da força e as armas de fogo, por exemplo, a solução pacífica dos conflitos, o estudo do comportamento de multidões e as técnicas de persuasão, negociação e mediação, assim como aos meios técnicos, com vistas a limitar o emprego da força e armas de fogo. Os organismos encarregados de fazer cumprir a lei devem examinar seus programas de capacitação e procedimentos operativos à luz de casos concretos; 4) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei proporcionarão orientação aos funcionários que intervenham em situações em que se empregue a força ou armas de fogo para aliviar as tensões próprias dessas situações.


Sobre procedimentos de apresentação de relatórios e recursos, os princípios estabelecem: 1) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei estabelecerão procedimentos eficazes para a apresentação de relatórios e recursos em relação aos casos que ocasionarem lesões ou morte ou na hipótese do recurso nos casos de emprego arbitrário ou abusivo da força ou de armas de fogo[6]. 2) As pessoas afetadas pelo emprego da força e de armas de fogo ou seus representantes legais terão acesso a um processo independente, incluído um processo judicial. Em caso de morte dessas pessoas, está disposição se aplicará aos seus herdeiros; 3) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei adotarão as medidas necessárias para que os funcionários superiores assumam a devida responsabilidade quando tenham conhecimento ou deveriam tê-lo, de que funcionários sob seu mando recorrem, ou tem recorrido, ao uso ilícito da força e de armas de fogo, e não adotem todas as medidas a sua disposição para impedir, eliminar ou denunciar esse uso; 4) Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei adotarão as medidas necessárias para que não se imponha nenhuma sanção penal ou disciplinar contra os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei que, em cumprimento aos códigos de conduta pertinente, se neguem a executar uma ordem de empregar a força ou armas de fogo ou denunciem esse emprego por outros funcionários; 5) Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei não poderão alegar obediência de ordens superiores se tinham conhecimento de que a ordem de empregar a força ou armas de fogo, raiz da qual ocasionou a morte ou feridas graves a uma pessoa, era manifestamente ilícita e tiveram uma oportunidade razoável de se negar a cumpri-la. De qualquer modo, também serão responsáveis os superiores que deram as ordens ilícitas.


No plano nacional verifica-se a inexistência de um marco legal específico de regulação do uso legítimo da força legal. Não obstante, há algumas condicionantes legais que incidem direta ou indiretamente sobre o uso legítimo da força legal e que estão presentes, dentre outros marcos normativos do gênero e àqueles outros de natureza procedimental, na Constituição da República Federativa do Brasil, no Código Penal (Decreto – Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940) e na Lei sobre Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898, de 09 de dezembro de 1965).


O artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil ao prescrever que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio...”, impõem implicitamente um limitador ao uso da força por parte das autoridades policiais: o exercício da segurança pública pressupõe a preservação da vida e do patrimônio das pessoas. Portanto, todo e qualquer ato de polícia que potencialize riscos de mortes ou graves danos ao patrimônio caracteriza uma grave violação ao preceito constitucional e torna ilegítimo e ilegal o exercício do poder e dos atos de polícia cujo emprego da força produza resultados que comprometam ou possam vir a comprometer a integridade física dos indivíduos e de seu patrimônio.


O Artigo 25 do Código Penal preconiza o entendimento do que venha a ser legítima defesa: “Entende-se por legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Depreende-se de tal entendimento os seguintes componentes que regulam o uso legítimo da força legal para a hipótese de legítima defesa: 1) o uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão (proporcionalidade da ação); 2) injusta agressão, atual ou iminente (temporalidade da ação); e, 3) a direito seu ou de outrem (legitimidade da ação).


A lei nº 4.898, de 09 de dezembro de 1965, regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, contra as autoridades[7] que, no exercício de suas funções cometerem abusos que atentem contra: a) À liberdade de locomoção; b) À inviolabilidade do domicílio; c) Ao sigilo da correspondência; d) À liberdade de consciência e de crença; e) Ao livre exercício do culto religioso; f) À liberdade de associação; g) Aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) Ao direito de reunião; i) À incolumidade física do indivíduo; j) Aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. Também constitui abuso de autoridade: a) Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) Submeter pessoa sob guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) Deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) Deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) Levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f) Cobrar o carcereiro ou agente da autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; g) Recusar o carcereiro ou agente da autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa; h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder, ou sem competência legal; e, i) Prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.



[1] Não se poderão invocar circunstâncias excepcionais tais como a instabilidade política interna ou qualquer outra situação pública de emergência para justificar a não observância desses princípios básicos.

[2] A expressão “funcionários encarregados de cumprir a lei” inclui a todos os agentes da lei, nomeados ou eleitos, que exercem funções de polícia, especialmente com capacidade de prisão ou detenção. Nos países onde a função de polícia é exercida por autoridades militares, uniformizadas ou não, ou forças de segurança do Estado, se considerará que a definição de funcionários encarregados de cumprir a lei compreende os funcionários desses serviços.

[3] Entre as armas deveria figurar as não letais para emprego apropriado, com vistas a restringir o emprego de meios que possam ocasionar lesões ou morte. Da mesma forma funcionários encarregados de fazer cumprir a lei deveriam contar com equipamento de proteção pessoal (escudos, capacetes e coletes balísticos, meios de transportes blindados a fim de diminuir a necessidade de armas de qualquer tipo). Deverá ser feita uma cuidadosa avaliação da fabricação e distribuição de armas não letais a fim de reduzir ao mínimo o risco de causar lesões a pessoas estranhas aos acontecimentos.

[4] Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei se identificarão e darão uma clara advertência de sua intenção de empregar armas de fogo, com tempo suficiente para que a mensagem seja compreendida, salvo se ao dar a advertência se crie um risco de morte ou danos graves ao funcionário ou a outras pessoas.

[5] Os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei se absterão de empregar armas de fogo nesses casos, salvo em defesa própria ou de outras pessoas, em caso de perigo iminente de morte ou lesões graves ou com o propósito de evitar o cometimento de um delito particularmente grave que represente uma série ameaça para a vida, ou com o objetivo de deter uma pessoa que represente esse perigo e ofereça resistência a sua autoridade ou para impedir a sua fuga, e somente no caso de que resulta insuficiente adoção de medidas menos extremas.

[6] Os governos e os organismos encarregados de fazer cumprir a lei assegurarão que se estabeleça um procedimento de revisão eficaz e que autoridades administrativas ou judiciais independentes estejam dotadas de competência em circunstâncias apropriadas. Em caso de morte e lesões graves ou outras conseqüências de importância, se enviará rapidamente um relatório detalhado às autoridades competentes para a revisão administrativa e a supervisão judicial.

[7] Considera-se autoridade, para os efeitos legais da Lei nº 4.898/65, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.

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